30/05/2016

CONSIDERAÇÕES.SOBRE A IN 11 DO MINISTÉRIO DA  AGRICULTURA
                                                                                          Carlos Alberto Magioli

            O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, publicou em 10 de maio do corrente ano a Instrução Normativa de número 11 que autoriza o ingresso no território nacional de um elenco de produtos de origem animal destinados ao uso e ao consumo humano ou animal, considerando as condições de serem industrializados e classificados como não presumíveis veiculadores de doenças contagiosas. Sobre tal ato gostaria de fazer algumas considerações:
            Inicialmente permito considerar a existência de uma hierarquização com respeito a atos emanados do poder público, em que sua maior expressão é a lei que, somente pode ser revogada através de outro diploma similar. Da mesma forma e pelas mesmas razões um decreto somente poderá ser revogado por uma lei, que tem uma hierarquia superior ou por outro decreto, entendendo  assim que uma instrução normativa jamais pode revogar uma lei ou um decreto..
            Com base neste argumento inicial, reporto-me ao decreto 24.548 de 03 de julho de 1934, ainda em vigor, que aprovou o Regulamento do Serviço de Defesa Sanitária Animal que em seu artigo 3º cita “E' igualmente proibido a entrada em território nacional de produtos ou despojos de animais, forragens ou outro qualquer material presumível veiculador de agentes etiológicos de doenças contagiosas” O artigo 50.define ainda que “É proibida a importação de produtos de origem animal, quando não acompanhados de certificado sanitário fornecido por autoridade competente do país de procedência.” E ainda mais, o artigo 53 estipula que” Em se tratando de couros, peles, lãs, chifres cabelos, etc., para fins industriais, tais produtos só serão desembaraçados quando os certificados trouxerem a declaração de que procedem de zonas onde não estava grassando carbúnculo hemático, a febre aftosa ou a peste bovina”.
O Decreto nº 5.741, de 30 de março de 2006, delegou ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o estabelecimento dos corredores de importação e exportação de animais, vegetais, insumos, inclusive alimentos para animais e produtos de origem animal e vegetal, com base em análises de risco, requisitos e controles sanitários, “status” zoo-sanitário e fitossanitário, localização geográfica e disponibilidade de infraestrutura e de recursos humanos.
Observa-se nestes dois diplomas legais, a preocupação do legislador em salvaguardar as fronteiras brasileiras do perigo representado pela entrada de algum agente veiculador de processos patológicos, principalmente exóticos, para os animais.
 O Médico Veterinário Josélio de Andrade Moura já em 2004, ao proferir palestra sobre o tema “Análise de Risco como Ferramenta na Prevenção e Controle de Doenças” na IV Semana de Caprinocultura e Ovinocultura Brasileira na Embrapa Caprinos em Sobral, Ceará, citou que “o incremento do risco mundial de difusão de agentes patológicos motivado pela globalização e o consequente incremento do comércio internacional conduziram, nos últimos anos, a verdadeiras catástrofes como as crises da encefalopatia espongiforme bovina (BSE), da febre aftosa e recentemente da gripe aviária altamente patológica. Outras enfermidades animais, endêmicas nos países em via de desenvolvimento ou em transição, limitam a produção de alimentos e os intercâmbios comerciais desses países. A intensificação do comércio internacional implica maior risco potencial para a introdução de enfermidades; por isso, é essencial que se estabeleçam mecanismos que, ao mesmo tempo em que permitam as transações comerciais, protejam a situação sanitária dos países envolvidos”.
O Médico Veterinário Ricardo Soncini em palestra sob o título “Barreiras Sanitárias na Avicultura” no V simpósio Brasil Sul de Avicultura acontecido em Chapecó em 2004, manifestou que “As barreiras sanitárias impostas pelos países importadores, em substituição às barreiras tarifarias, constituem o maior obstáculo para acesso aos mercados internacionais. Diferente do que antes acontecia, na atualidade todos os países se protegem com rigorosas exigências sanitárias antes de abrirem seus mercados”
Ratificando estes argumentos é conveniente lembrar a missão da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) de garantir a transparência do status de saúde animal no mundo e dentre as obrigações formais dos países membros, inclui-se o envio de informações da maneira mais oportuna e transparente sobre as doenças relevantes dos animais, incluindo zoonoses presentes em seus territórios, sendo para este efeito instituída a lista de doenças de animais terrestres e aquáticos de declaração obrigatória e que compõe o Sistema de Informação Mundial de Saúde Animal.
Tomando como base esta lista, em artigo de minha autoria sob o titulo “Estudo e avaliação dos dados de apreensões de produtos de origem animal pelo Serviço de Vigilância Agropecuária no Rio de Janeiro, em voos internacionais e sua interação com possíveis riscos sanitários” há uma citação do professor Clayton Bernardinelli Gitti, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de epidemiologia e saúde pública, para quem,  doenças dos  animais atualmente  não descritas no Brasil como a Brucelose (Brucella melitensis),  Febre hemorrágica de Criméia-Congo, Infecção  pelo vírus da febre do Valle do Rift,  Peste suína africana, Encefalopatia espongiforme bovina,  Infecção pelo vírus de influenza aviaria, Infecção das abelhas melíferas por Melissococcus plutonius (Loque europeia), Infestação por Aethina tumida (besouro das colmeias), Necrose hematopoiética epizootica, Necrose hematopoiética infecciosa e  Septicemia hemorrágica viral, podem ser introduzidas no país através de diversos  produtos de origem animal.
De oportuno reporto-me a entrada da peste suína africana no Brasil no ano de 1977, sabidamente por restos de alimentação de bordo de voos originários da península ibérica que aportavam no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, que além de causar um dispêndio de recursos da ordem de vinte milhões de dólares em ações para o seu combate e erradicação, fechou por mais de quinze anos, o mercado internacional da carne suína brasileira.
O Relatório do Tribunal de Contas da União que avaliou o programa de ações da vigilância e fiscalização no trânsito internacional de produtos agropecuários em 2006 citou informações da Embrapa de que, com relação ao ingresso ilegal de produtos de origem animal e vegetal no país, os principais pontos de entrada são por bagagem de passageiros de viagens internacionais e por encomenda postal, como a alertar para as possíveis consequências econômicas que este fato poderia gerar.
De relevância cito como resultado do trabalho anteriormente aludido, que no período de 2010 a 2014, o Serviço de Vigilância Agropecuária no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro – Antônio Carlos Jobim (SVA/AIRJ) realizou 17.233 apreensões de produtos de origem animal diversos, industrializados e artesanais, oriundos de 93 países diferentes, num total de 29.239,446 kg considerando que dos 74.510 voos no período, transportando 9.652.261 passageiros, apenas 14,34% foram submetidos a fiscalização e em consequência 85,66% não o foram.
Ao considerar a instrução normativa ora avaliada, deve ser motivo de registro que a simplicidade técnica de se considerar o produto industrializado como indene sob o aspecto sanitário não encontra respaldo na literatura científica, uma vez que, cada agente infeccioso tem suas características de resistência à temperatura, tempo de exposição ou a produtos químicos, por exemplo, o que nem sempre os processos tecnológicos de produção alcançam. No geral os parâmetros designados para processamento tecnológico são especifico para cada produto ou grupo deles, considerando a especificidade da inocuidade que se deseja ou as características sensoriais que se espera.   
Citando apenas a encefalopatia espongiforme bovina, doença que representa a atual preocupação mundial, deflagrada pela presença de uma proteína anormal infecciosa no tecido nervoso dos bovinos, prion, resistente aos procedimentos de inativação comercial inclusive o calor e transmitida entre os animais por alimentos com resíduos de bovinos ou ovelhas infectadas, a OIE estabelece com base científica e imparcial para os países membros os critérios de risco insignificante, risco controlado e risco indeterminado em virtude de sua gravidade e importância, condição que não anula a possibilidade de um produto cárneo mesmo embalado, rotulado e identificado, albergar a proteína contaminante, fator impossível de se identificar durante os trabalhos de fiscalização em barreiras internacionais.
O próprio Ministério da Agricultura proíbe a utilização de qualquer resíduo de origem animal no preparo de rações para ruminantes, como forma de impedir a transmissão da encefalopatia espongiforme bovina entre estes animais.
Do mesmo modo, ao considerarmos a influenza aviária em suas diversas formas, outra zoonose que também contemporaneamente preocupa o mundo pela possibilidade de infectar todos os tipos de aves selvagens ou domésticas em todas as áreas, com alta taxa de mortalidade e tipicamente associada com o envolvimento humano, seria oportuno citar o artigo de Arleyn Luiz fachinello e Joaquim Bento de Souza Ferreira Filho, publicado na Revista de Economia e Sociologia Rural, volume 48 de 2010, sob o título “Gripe Aviária no Brasil, Uma Análise Econômica de Equilibrio Geral” em que traçam uma perspectiva economica para o caso desta doenças chegar ao Brasil.
Os autores simularam três cenários o primeiro considerando a existência de um único foco no estado do Rio Grande do Norte, região Nordeste, o segundo levando em consideração o surgimento de focos da doença somente no estado de São Paulo e o terceiro simulando o aparecimento de focos em diversas regiões brasileiras (Rio Grande do Norte, São Paulo, Rondônia e Rio Grande do Sul), escolhidas por receberem aves migratórias da américa do norte, concluindo por um impacto negativo no segmento avícola em todo o País, sendo mais intenso quando os focos ocorrem próximos das regiões produtoras e consumidoras. Regionalmente, destacam-se os prejuízos verificados no sul, porque a atividade avícola dessa região tem grande peso na dinâmica econômica local e nacional. Verificou-se, também a redução da massa salarial no sul, o que acaba se refletindo em menor demanda por outros produtos e serviços. A maior procura nacional interna e externa por bens substitutos, no caso as carnes bovina e suína, ajudaria a amenizar e, em alguns casos, a compensar, a queda do produto regional. Para ovos frescos, as perdas mais significativas ocorreriam no sudeste e nordeste, maiores produtores brasileiros do item.  No conjunto do País, seria a redução do consumo doméstico que preponderaria pela explicação da queda da produção dos produtos avícolas e do PIB real. Assim, a percepção de risco por parte dos consumidores nacionais e a reação dos países compradores são os pontos chaves na determinação do impacto econômico que surtos de gripe aviária de alta patogenicidade poderiam gerar sobre a economia brasileira e suas regiões.
Obviamente que estes mesmos cenários poderiam ser esperados no caso da entrada da doença por aves ou seus produtos contaminados, em virtude da diminuição do rigor da fiscalização agropecuária em cumprimento da instrução normativa motivo das presentes considerações.
Outro aspecto a ser considerado no texto da aludida instrução normativa, ou seja, de produtos não serem presumíveis veiculadores de doenças contagiosas, a possibilidade de confirmação desta condição somente seria possível nos casos em que a autoridade do país de origem a atestasse oficialmente através de documento reconhecido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, considerando a ausência de contaminação específica e por região (o chamado certificado de procedência) ou através de analises laboratoriais próprias para cada produto e de acordo com os riscos que poderiam advir das regiões produtores, caso que obviamente se apresenta como inviável.
Importante reportar-se ao artigo do docente da Universidade de Brasília, Professor Cristiano Barros de Melo e colaboradores sob o título “Detecção microbiológica de bactérias em produtos de origem animal na bagagem de passageiros em voos internacionais para o Brasil” cujos resultados descrevem que, bagagens de 119 passageiros de 35 companhias aéreas provenientes de 48 países, foram interceptadas pelo Serviço de Vigilância Agropecuária nos aeroportos Internacional de São Paulo / Guarulhos – Governador André Franco Montoro e Internacional do Rio de Janeiro / Galeão – Antônio Carlos Jobim, no período de 23 de abril de 2010 a 19 de agosto de 2011 sendo retiradas 322 amostras de produtos apreendidos para testar a presença de coliformes totais e termotolerantes, Staphylococcus aureus, a presença de Listeria monocytogenes e Salmonella.  A maioria dos produtos analisadas apresentou contaminação por coliformes presentes acima de limites aceitáveis e que 83,4% (40/48) dos produtos tiveram algum tipo de contaminação. O segundo microorganismo mais prevalente encontrado foi a Listéria. monocytogenes em 22,9% (11/48) e Staphylococcus. aureus foi encontrado em 14,58% (7/48) das amostras. Entre os itens apreendidos, Salmonella foi encontrada em lingüiça de porco, concluindo pela importancia para a saúde pública da contaminação de produtos de origem animal por patogenos microbiológico como indicadores da má qualidade do alimento.
Em outro artigo o Professor Cristiano Barros Melo e colaboradores registram que de 166 produtos lacteos analisados no período de 2010 a 2011, apreendidos pelo Serviço de Vigilância Agropecuária em bagagens de passageiros de voos internacionais nos aeroportos Internacional de Guarulhos e Internacional do Rio de Janeiro, 42,1%  apresentaram Brucella positivo sendo originarios de Argentina, Espanha, França, Iraque, Israel, Itália, Líbano, Portugal, e Turquia. Mycobacterium bovis foi detectado em doce de leite da Argentina em leite em pó do Chile e em queijos da Espanha, Holanda, Itália, Líbano, Marrocos, Noruega e Portugal, concluindo que bactérias podem ser introduzidas num país atraves de animais contaminados e produtos que são trazidos através das fronteiras ilegalmente e que o risco pode ser ainda maior quando estes produtos são transportados nas bagagens dos passageiros em voos internacionais, em função do crescente número destes passageiros e de sua ampla gama de origens. Maior atenção deve ser dada à vigilância agropecuária em aeroportos para mitigar o risco da introdução destes produtos irregulares.
Necessário se faz considerar que em ambos os casos, certamente boa parte dos produtos eram industrializados, embalados e identificados o que, na interpretação do constante da instrução normativa 11, estariam classificados como inócuos.
Além disto, a delimitação de quantidade máxima permitida não tem qualquer relevância quando se estabelece critério sanitário, uma vez que, dependendo das condições uma quantidade pequena de um produto pode representar maior perigo de transmissão de uma doença para os animais do que uma grande quantidade. O risco sanitário de um produto está no agente contaminante, nas características do produto, suas condições de conservação, sua origem, e não no seu peso ou tamanho. Esta parametrização quanto ao peso permitido e em consequência ao não permitido, por si só, já demonstra o desconhecimento do legislador sobre os aspectos que regem a transmissão de agentes patogênicos entre animais e através de produtos de origem animal, que nada tem a ver com a quantidade ou tamanho do produto.
Exemplifiquemos apenas o caso do Bacilus Anthracis, cujos esporos podem resistir por até duzentos anos nas condições ambientais, temperaturas menores de 140ºC e desinfetantes químicos, independente do peso ou do tamanho do material que o alberga, existindo citações de sua presença em utensílios de couro pequenos utilizados como ornamentações e em apetrechos para montarias.
Com estas considerações tenho o objetivo de deixar uma contribuição de forma a demonstrar que, nas eventuais ações para modificar os critérios de atuação do Serviço de Vigilância Agropecuária na fiscalização de produtos de origem animal nas barreiras internacionais, não cabem pareceres extemporâneos, “achismo” ou atos que contrariem a legislação maior sem qualquer embasamento razoável, mas sim as precedidas de estudos baseados em conhecimentos científicos aplicados aos parâmetros técnicos necessários para a manutenção do status sanitário nacional, principal responsável pela pujança brasileira no agronegócio, invejado no mundo inteiro.
Enquanto países desenvolvidos, que entendem a importância econômica com profundo reflexo social, das barreiras zoo e fitossanitárias e por isto a cada dia aumentam as suas exigências para a entrada de produtos de origem animal e vegetal, o Brasil na “contra mão” da evolução, delega à própria sorte a manutenção do seu status de grande produtor e exportador de alimentos, desconsiderando a possibilidade de, em um futuro muito próximo, tornar-se o celeiro do mundo.

                                                              Maio de 2016


                                                  Carlos Alberto Magioli
                                                     Médico Veterinário
                                               Fiscal Federal Agropecuário
                                         Academia de Med. Vet. no Estado RJ

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