CONSIDERAÇÕES.SOBRE
A IN 11 DO MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
Carlos Alberto Magioli
O Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, publicou em 10 de maio do corrente ano a Instrução Normativa de
número 11 que autoriza o ingresso no território
nacional de um elenco de produtos de origem animal destinados ao uso e ao
consumo humano ou animal, considerando as condições de serem industrializados e
classificados como não presumíveis veiculadores de doenças contagiosas. Sobre
tal ato gostaria de fazer algumas considerações:
Inicialmente
permito considerar a existência de uma hierarquização com respeito a atos
emanados do poder público, em que sua maior expressão é a lei que, somente pode
ser revogada através de outro diploma similar. Da mesma forma e pelas mesmas
razões um decreto somente poderá ser revogado por uma lei, que tem uma
hierarquia superior ou por outro decreto, entendendo assim que uma instrução normativa jamais pode
revogar uma lei ou um decreto..
Com base neste argumento
inicial, reporto-me ao decreto 24.548 de 03 de julho de 1934, ainda em vigor,
que aprovou o Regulamento do Serviço de Defesa Sanitária Animal que em seu
artigo 3º cita “E' igualmente proibido a entrada em
território nacional de produtos ou despojos de animais, forragens ou outro
qualquer material presumível veiculador de agentes etiológicos de doenças
contagiosas” O artigo 50.define ainda que “É proibida a importação de produtos
de origem animal, quando não acompanhados de certificado sanitário fornecido
por autoridade competente do país de procedência.” E ainda mais, o artigo 53
estipula que” Em se tratando de couros, peles, lãs, chifres cabelos, etc., para
fins industriais, tais produtos só serão desembaraçados quando os certificados
trouxerem a declaração de que procedem de zonas onde não estava grassando carbúnculo
hemático, a febre aftosa ou a peste bovina”.
O Decreto nº 5.741, de 30 de março de 2006, delegou ao
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o estabelecimento dos
corredores de importação e exportação de animais, vegetais, insumos, inclusive
alimentos para animais e produtos de origem animal e vegetal, com base em
análises de risco, requisitos e controles sanitários, “status” zoo-sanitário e
fitossanitário, localização geográfica e disponibilidade de infraestrutura e de
recursos humanos.
Observa-se nestes dois diplomas legais, a preocupação do
legislador em salvaguardar as fronteiras brasileiras do perigo representado pela
entrada de algum agente veiculador de processos patológicos, principalmente
exóticos, para os animais.
O Médico Veterinário Josélio de Andrade Moura
já em 2004, ao proferir palestra sobre o tema “Análise de Risco como
Ferramenta na Prevenção e Controle de Doenças” na IV Semana de Caprinocultura e
Ovinocultura Brasileira na Embrapa Caprinos em Sobral, Ceará, citou que “o incremento do risco mundial de difusão de
agentes patológicos motivado pela globalização e o consequente incremento do
comércio internacional conduziram, nos últimos anos, a verdadeiras catástrofes
como as crises da encefalopatia espongiforme bovina (BSE), da febre aftosa e
recentemente da gripe aviária altamente patológica. Outras enfermidades animais,
endêmicas nos países em via de desenvolvimento ou em transição, limitam a
produção de alimentos e os intercâmbios comerciais desses países. A
intensificação do comércio internacional implica maior risco potencial para a
introdução de enfermidades; por isso, é essencial que se estabeleçam mecanismos
que, ao mesmo tempo em que permitam as transações comerciais, protejam a
situação sanitária dos países envolvidos”.
O Médico Veterinário
Ricardo Soncini em palestra sob o título “Barreiras
Sanitárias na Avicultura” no V simpósio Brasil Sul de Avicultura acontecido em
Chapecó em 2004, manifestou que “As
barreiras sanitárias impostas pelos países importadores, em substituição às
barreiras tarifarias, constituem o maior obstáculo para acesso aos mercados internacionais.
Diferente do que antes acontecia, na atualidade todos os países se protegem com
rigorosas exigências sanitárias antes de abrirem seus mercados”
Ratificando estes argumentos é conveniente lembrar a missão da
Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) de garantir a transparência do status
de saúde animal no mundo e dentre as obrigações formais dos países membros,
inclui-se o envio de informações da maneira mais oportuna e transparente sobre
as doenças relevantes dos animais, incluindo zoonoses presentes em seus
territórios, sendo para este efeito instituída a lista de doenças de animais
terrestres e aquáticos de declaração obrigatória e que compõe o Sistema de
Informação Mundial de Saúde Animal.
Tomando
como base esta lista, em artigo de minha autoria sob o titulo “Estudo e
avaliação dos dados de apreensões de produtos de origem animal pelo Serviço de
Vigilância Agropecuária no Rio de Janeiro, em voos internacionais e sua
interação com possíveis riscos sanitários” há uma citação do professor Clayton Bernardinelli
Gitti, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Departamento de epidemiologia
e saúde pública, para quem, doenças
dos animais atualmente não descritas no Brasil como a Brucelose (Brucella melitensis), Febre hemorrágica de Criméia-Congo,
Infecção pelo vírus da febre do Valle do
Rift, Peste suína africana, Encefalopatia
espongiforme bovina, Infecção pelo vírus
de influenza aviaria, Infecção das abelhas melíferas por Melissococcus
plutonius (Loque europeia), Infestação por Aethina tumida (besouro
das colmeias), Necrose hematopoiética epizootica, Necrose hematopoiética
infecciosa e Septicemia hemorrágica
viral, podem ser introduzidas no país através de diversos produtos de origem animal.
De
oportuno reporto-me a entrada da peste suína africana no Brasil no ano de 1977,
sabidamente por restos de alimentação de bordo de voos originários da península
ibérica que aportavam no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, que além de
causar um dispêndio de recursos da ordem de vinte milhões de dólares em ações
para o seu combate e erradicação, fechou por mais de quinze anos, o mercado
internacional da carne suína brasileira.
O Relatório do Tribunal
de Contas da União que avaliou o programa de ações da vigilância e fiscalização
no trânsito internacional de produtos agropecuários em 2006 citou informações
da Embrapa de que, com relação ao ingresso ilegal de produtos de origem animal
e vegetal no país, os principais pontos de entrada são por bagagem de
passageiros de viagens internacionais e por encomenda postal, como a alertar
para as possíveis consequências econômicas que este fato poderia gerar.
De relevância cito como
resultado do trabalho anteriormente aludido, que no período de 2010 a 2014, o
Serviço de Vigilância Agropecuária no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro
– Antônio Carlos Jobim (SVA/AIRJ) realizou 17.233 apreensões de produtos de
origem animal diversos, industrializados e artesanais, oriundos de 93 países
diferentes, num total de 29.239,446 kg considerando que dos 74.510
voos no período, transportando 9.652.261 passageiros, apenas 14,34% foram
submetidos a fiscalização e em consequência 85,66% não o foram.
Ao
considerar a instrução normativa ora avaliada, deve ser motivo de registro que
a simplicidade técnica de se considerar o produto industrializado como indene
sob o aspecto sanitário não encontra respaldo na literatura científica, uma vez
que, cada agente infeccioso tem suas características de resistência à temperatura,
tempo de exposição ou a produtos químicos, por exemplo, o que nem sempre os
processos tecnológicos de produção alcançam. No geral os parâmetros designados
para processamento tecnológico são especifico para cada produto ou grupo deles,
considerando a especificidade da inocuidade que se deseja ou as características
sensoriais que se espera.
Citando
apenas a encefalopatia espongiforme bovina, doença que representa a atual
preocupação mundial, deflagrada pela presença de uma proteína anormal
infecciosa no tecido nervoso dos bovinos, prion, resistente aos procedimentos
de inativação comercial inclusive o calor e transmitida entre os animais por
alimentos com resíduos de bovinos ou ovelhas infectadas, a OIE estabelece com base científica e
imparcial para os países membros os critérios de risco insignificante, risco
controlado e risco indeterminado em virtude de sua gravidade e importância,
condição que não anula a possibilidade de um produto cárneo mesmo embalado,
rotulado e identificado, albergar a proteína contaminante, fator impossível de
se identificar durante os trabalhos de fiscalização em barreiras internacionais.
O
próprio Ministério da Agricultura proíbe a utilização de qualquer resíduo de
origem animal no preparo de rações para ruminantes, como forma de impedir a
transmissão da encefalopatia espongiforme bovina entre estes animais.
Do
mesmo modo, ao considerarmos a influenza aviária em suas diversas formas, outra
zoonose que também contemporaneamente preocupa o mundo pela possibilidade de infectar todos os tipos
de aves selvagens ou domésticas em todas as áreas, com alta taxa de mortalidade
e tipicamente associada com o envolvimento humano, seria oportuno citar o
artigo de Arleyn Luiz fachinello e Joaquim Bento de Souza Ferreira Filho,
publicado na Revista de Economia e Sociologia Rural, volume 48 de 2010, sob o
título “Gripe Aviária no Brasil, Uma Análise Econômica de Equilibrio Geral” em
que traçam uma perspectiva economica para o caso desta doenças chegar ao
Brasil.
Os autores simularam
três cenários o primeiro considerando a existência de um único foco no estado
do Rio Grande do Norte, região Nordeste, o segundo levando em consideração o
surgimento de focos da doença somente no estado de São Paulo e o terceiro
simulando o aparecimento de focos em diversas regiões brasileiras (Rio Grande
do Norte, São Paulo, Rondônia e Rio Grande do Sul), escolhidas por receberem
aves migratórias da américa do norte, concluindo por um impacto negativo no
segmento avícola em todo o País, sendo mais intenso quando os focos ocorrem
próximos das regiões produtoras e consumidoras. Regionalmente, destacam-se os
prejuízos verificados no sul, porque a atividade avícola dessa região tem
grande peso na dinâmica econômica local e nacional. Verificou-se, também a
redução da massa salarial no sul, o que acaba se refletindo em menor demanda
por outros produtos e serviços. A maior procura nacional interna e externa por
bens substitutos, no caso as carnes bovina e suína, ajudaria a amenizar e, em
alguns casos, a compensar, a queda do produto regional. Para ovos frescos, as
perdas mais significativas ocorreriam no sudeste e nordeste, maiores produtores
brasileiros do item. No conjunto do
País, seria a redução do consumo doméstico que preponderaria pela explicação da
queda da produção dos produtos avícolas e do PIB real. Assim, a percepção de
risco por parte dos consumidores nacionais e a reação dos países compradores
são os pontos chaves na determinação do impacto econômico que surtos de gripe
aviária de alta patogenicidade poderiam gerar sobre a economia brasileira e
suas regiões.
Obviamente
que estes mesmos cenários poderiam ser esperados no caso da entrada da doença
por aves ou seus produtos contaminados, em virtude da diminuição do rigor da
fiscalização agropecuária em cumprimento da instrução normativa motivo das
presentes considerações.
Outro
aspecto a ser considerado no texto da aludida instrução normativa, ou seja, de
produtos não serem presumíveis veiculadores de
doenças contagiosas, a possibilidade de confirmação desta condição somente
seria possível nos casos em que a autoridade do país de origem a atestasse
oficialmente através de documento reconhecido pelo Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento, considerando a ausência de contaminação específica e
por região (o chamado certificado de procedência) ou através de analises
laboratoriais próprias para cada produto e de acordo com os riscos que poderiam
advir das regiões produtores, caso que obviamente se apresenta como inviável.
Importante
reportar-se ao artigo do docente da Universidade de Brasília, Professor Cristiano
Barros de Melo e colaboradores sob o título “Detecção microbiológica de bactérias em produtos de origem animal na bagagem de passageiros em voos
internacionais para o Brasil” cujos resultados descrevem
que, bagagens
de 119 passageiros de 35 companhias aéreas provenientes de 48 países, foram
interceptadas pelo Serviço de Vigilância Agropecuária nos aeroportos
Internacional de São Paulo / Guarulhos – Governador André Franco Montoro e
Internacional do Rio de Janeiro / Galeão – Antônio Carlos Jobim, no período de
23 de abril de 2010 a 19 de agosto de 2011 sendo retiradas 322
amostras de produtos apreendidos para testar a presença de coliformes totais e
termotolerantes, Staphylococcus aureus,
a presença de Listeria monocytogenes
e Salmonella. A maioria dos produtos analisadas apresentou
contaminação por coliformes presentes acima de limites aceitáveis e que 83,4%
(40/48) dos produtos tiveram algum tipo de contaminação. O segundo
microorganismo mais prevalente encontrado foi a Listéria. monocytogenes em 22,9% (11/48) e Staphylococcus. aureus foi encontrado em 14,58% (7/48) das
amostras. Entre os itens apreendidos, Salmonella foi encontrada em lingüiça de
porco, concluindo pela importancia para a saúde pública da contaminação de
produtos de origem animal por patogenos microbiológico como indicadores da má
qualidade do alimento.
Em outro artigo o Professor
Cristiano Barros Melo e colaboradores registram que de 166 produtos lacteos
analisados no período de 2010 a 2011, apreendidos pelo Serviço de Vigilância
Agropecuária em bagagens de passageiros de voos internacionais nos aeroportos
Internacional de Guarulhos e Internacional do Rio de Janeiro, 42,1% apresentaram Brucella positivo sendo originarios de Argentina, Espanha, França,
Iraque, Israel, Itália, Líbano, Portugal, e Turquia. Mycobacterium bovis foi detectado em doce de leite da Argentina em
leite em pó do Chile e em queijos da Espanha, Holanda, Itália, Líbano,
Marrocos, Noruega e Portugal, concluindo que bactérias podem ser introduzidas
num país atraves de animais contaminados e produtos que são trazidos através
das fronteiras ilegalmente e que o risco pode ser ainda maior quando estes
produtos são transportados nas bagagens dos passageiros em voos internacionais,
em função do crescente número destes passageiros e de sua ampla gama de
origens. Maior atenção deve ser dada à vigilância agropecuária em aeroportos
para mitigar o risco da introdução destes produtos irregulares.
Necessário se faz considerar que em
ambos os casos, certamente boa parte dos produtos eram industrializados,
embalados e identificados o que, na interpretação do constante da instrução
normativa 11, estariam classificados como inócuos.
Além disto, a
delimitação de quantidade máxima permitida não tem qualquer relevância quando
se estabelece critério sanitário, uma vez que, dependendo das condições uma
quantidade pequena de um produto pode representar maior perigo de transmissão
de uma doença para os animais do que uma grande quantidade. O risco sanitário
de um produto está no agente contaminante, nas características do produto, suas
condições de conservação, sua origem, e não no seu peso ou tamanho. Esta
parametrização quanto ao peso permitido e em consequência ao não permitido, por
si só, já demonstra o desconhecimento do legislador sobre os aspectos que regem
a transmissão de agentes patogênicos entre animais e através de produtos de
origem animal, que nada tem a ver com a quantidade ou tamanho do produto.
Exemplifiquemos
apenas o caso do Bacilus Anthracis,
cujos esporos podem resistir por até duzentos anos nas condições ambientais, temperaturas
menores de 140ºC e desinfetantes químicos, independente do peso ou do tamanho
do material que o alberga, existindo citações de sua presença em utensílios de
couro pequenos utilizados como ornamentações e em apetrechos para montarias.
Com estas
considerações tenho o objetivo de deixar uma contribuição de forma a demonstrar
que, nas eventuais ações para modificar os critérios de atuação do Serviço de
Vigilância Agropecuária na fiscalização de produtos de origem animal nas
barreiras internacionais, não cabem pareceres extemporâneos, “achismo” ou atos
que contrariem a legislação maior sem qualquer embasamento razoável, mas sim as
precedidas de estudos baseados em conhecimentos científicos aplicados aos
parâmetros técnicos necessários para a manutenção do status sanitário nacional,
principal responsável pela pujança brasileira no agronegócio, invejado no mundo
inteiro.
Enquanto países desenvolvidos,
que entendem a importância econômica com profundo reflexo social, das barreiras
zoo e fitossanitárias e por isto a cada dia aumentam as suas exigências para a
entrada de produtos de origem animal e vegetal, o Brasil na “contra mão” da
evolução, delega à própria sorte a manutenção do seu status de grande produtor
e exportador de alimentos, desconsiderando a possibilidade de, em um futuro
muito próximo, tornar-se o celeiro do mundo.
Maio de 2016
Carlos Alberto Magioli
Médico Veterinário
Fiscal Federal Agropecuário
Academia de Med. Vet. no Estado RJ